Poema tirado de uma notícia de jornal: elementos da obra bandeiriana segundo Davi Arrigucci Jr.

mhenrique
3 min readJul 23, 2020

Dentre honrosos trabalhos, Humildade, paixão e morte surge na obra do Professor Emérito da Universidade de São Paulo Davi Arrigucci Jr. como um estudo analítico do universo poético do modernista Manuel Bandeira. Estruturada em três componentes, como expresso no título, a composição trata de ensaios histórico-sociais e estilísticos de poemas carregados de experimentalismo, característica intrínseca do primeiro momento moderno brasileiro onde o poeta se encontra.

No capítulo Poema Desentranhado, somos introduzidos a uma visão panorâmica de traços da obra de Bandeira através do pequeno Poema tirado de uma notícia de jornal, um texto à primeira vista não literário em sua forma bruta, que é lapidado pelo autor por meio de uma minuciosa análise até atingir uma amplificação de sentido e sua forma poética. Arrigucci Jr., dessa forma, conduz o ensaio por meio da reconstrução histórica e teórica para a compreensão da relação do poema com o contexto jornalístico, com o próprio escritor e com o público.

Inicialmente, é necessário o entendimento de um momento anterior ao consolidado ideal modernista, onde escritores até então inseridos nos moldes parnasiano-simbolistas adotam os modelos prosaicos para a criação de novos textos. Neste cenário, o indivíduo e seus sentimentos cedem espaço à simplicidade do cotidiano, num formato narrativo onde o poeta mantém suas aspirações confidenciadas (fator constatado pelo distanciamento do narrador) e assume o papel de observador do seu dia-a-dia, mantendo-se atencioso à poesia entranhada em simples elementos.

Na obra bandeiriana, essa modernização do ideário moderno é impulsionada, além da vivência de rua do próprio poeta, pelo contato com a obra de uma importante figura do movimento: o poeta franco-suíço Blaise Cendrars. A naturalidade cendrarsiana, enraizada da vida urbana europeia (presente na obra de Baudelaire), juntamente ao novo sentido da literatura, funde-se à realidade brasileira no mesmo momento em que escritores como Mário e Oswald de Andrade, criando como dadaístas, simplificam o modo de se viver e fazer poesia através de matéria não poética.

Arrigucci Jr. contextualiza, histórica e geograficamente, elementos fundamentais que corroboraram para que as obras como a ensaiada no Poema Desentranhado surgissem, ressaltando, sobretudo, a mescla de gêneros, que resulta num aspecto que o autor caracteriza como primitivo. Ao misturar o épico e o dramático numa estrutura lírica, o poeta insere objetividade num ambiente naturalmente subjetivo, ressignificando relações e a percepção de valores: as restrições anteriormente impostas ao discurso poético são definitivamente abandonadas.

Entretanto, este caráter de junção e contradição não se restringe aos gêneros, uma vez que se extrai beleza literária de um texto não literário, aproxima-se o primitivo e o moderno, e se obtém uma densa visão sobre uma experiência humana através de uma manchete de jornal, que em sua forma original seria lida, e em seguida, facilmente esquecida. Tais fatores paradoxais, unidos, caracterizam a forma e o fundo geral do poema.

A partir de então, o ensaísta decifra aspectos estruturais minuciosos que revelam mais sobre o personagem pertencente ao poema jornalístico, o João Gostoso. A relação entre seu nome, a falta de um sobrenome em detrimento a um adjetivo, detalhes sobre seu subemprego, moradia e habitação (amparados pela percepção sonora do trecho), bem como o traço generalizador que a reportagem possui, são abordados a fim de se entender o processo da caracterização que Bandeira cria, além da assimetria dos versos e do ritmo desenvolvido para a leitura que acompanha a trágica trajetória de João.

Estes detalhes da forma ampliam o fundo já definido do poema, e permitem uma compreensão de um contexto expandido: a realidade brasileira, onde elementos espaciais contrapostos aludem à disparidade social gerada por fatores históricos. A complexidade do texto se intensifica a partir desse ponto de vista, e pela assimilação entre o caráter do indivíduo e seu destino.

Arrigucci Jr., ao se aproveitar da tragédia grega arcaica no fim de seu ensaio para justificar elementos modernos do Poema tirado de uma notícia de jornal, conclui o desentranhamento do poema de Manuel Bandeira em todos os seus sentidos, revelando a dualidade presente no processo de criação e na própria obra que, despida de adornos, representa o encontro da poesia brasileira com o próprio Brasil.

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